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A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

Pedra Podre

25.07.22, Dulce Ruano

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Há já algum tempo, muito, que olho para a minha cozinha e penso que gostaria de a mudar, tenho falta de arrumação e preciso que se torne mais eficiente, esta é a minha parte emocional a expressar-se porém quando o lado racional começa a fazer contas, nem que seja por alto, faz com que esta vontade vá sendo adiada até porque acho o dinheiro mais bem empregue em viajar.

Depois vêm as tentações do demónio a moer-me, ou não fosse eu demoníaca de entusiasmo pelas coisas que gosto mesmo a valer de se gostar.

Fomos a uma superficie comercial comprar um movelzito para a zona do churrasco, JM já me esperava na secção e enquanto me dirigia para lá, dois corredores antes sou sugada pelo íman da atração de algo que mesmo só visto de vislumbre senti que era quilo que queria para a vida.

Percebo que acabara de entrar na seção das cozinhas e de facto uma delas encheu-me bem o olho, abri gavetas e portas e percebi o jeitão que me daria em operação de arrumos, rapidamente ali montei o jogo dos tachos e panelas mais as famosas caixas “taparuéres” mas o que realmente me iluminou a vista foi a mesa e bancada em pedra.

Brilhava, apesar de não ser grande adepta de brilhos, aquela pedra era uma autêntica luz. De tons castanhos, beges e cinzentos, uma verdadeira beleza da natureza, olheia-a de todos os cantos, baixei-me para ver como era por baixo, colei as órbitas sobre o tampo, quase que me salivava pela bancada afora, que beleza extraodinária, dava voltas nas catacumbas do inferno para encontrar uma forma de ter uma cozinha com aquela pedra.

Saí dali meio cabisbaixa, no corredor ao lado estava JM de braços cruzados a aguardar pela minha chegada que não havia maneiras, quando cheguei nem tive coragem de lhe dizer o que tinha acabado de ver e de sentir, concordei com tudo o que ele disse, pegou na caixa do movelzito e fomos para a caixa pagar, mas antes puxei-lhe pelo canto inferior  da T-shirt e pedi-lhe que voltássemos atrás para lhe mostrar uma coisa. Assim que ele olhou para a bancada, disse de forma bastante afirmativa levando o queixo abaixo e acima “Hmm, é mesmo bonita, por acaso, é bem linda, espetacular”. Eu gostei tanto mas tanto que ainda que JM não gostasse eu continuaria a gostar muito e a desejar muito. Estava a ficar tarde e tivémos de ir grelhar o peixe para o almoço.

Resto do dia não me saía da cabeça ter aquela cozinha mesmo que modificada mas acima de tudo ter uma bancada daquela pedra, pelo que arranjei a mim própria uma desculpa para ir às compras e aproveitava ia lá novamente. Fui, pedi para falar com um técnico, simpático e atencioso e competente, gosto quando sou atendida por bons pofissionais, ao que me informou sobre qualidade dos materiais, a disposição dos módulos e valores aproximados e pelo menos fiquei com uma ideia de que antes vou continuar a viajar do que remodelar a cozinha.

Depois a conversa passou para a pedra da bancada e aqui é que foram elas. Não me deu valor nem aproximado, o que ali estava era meramente expositivo e o fornecedor nem tão pouco lhe interessava ter grande mediatismo por ser uma pedra bastante cara e complicada de trabalhar. Tentei perceber porquê, foi-me explicado que se chama Pedra Podre o que estranhei pois com este nome pouco nobre não jogava uma coisa com outra mas depois percebi que sim.

A qualidade da pedra no seu natural é bastante frágil, parte-se e esfarela-se com bastante facilidade. Após a extração e meticulosa preparação para fazer bancada ou uma mesa leva uma espécie de rede para a suster e não se desfazer depois é submetida a uma resina transparente que é o que lhe vai conferir suporte e brilho após polimento além de que preenche pequenos espaços que vão aparecendo por deslace da própria pedra.

Saí dali encantada com toda a explicação que me foi dada levando o meu lado racional a impôr-se e a fazer com que a vontade se fosse desvanescendo. Quando regressei a casa e já mentalizada que por muito bonita que a pedra seja não seria muito garantida para uma larga vida de uso diário, decidi que continuarei a viajar que é mais prazeiroso do que ficar fechada numa cozinha a morrer de tédio a olhar para o brilho duma bancada.

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Km 315 Valladolid

13.07.22, Dulce Ruano

 

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Quem anda pelas estradas dos nossos vizinhos espanhóis reconhece que quilómetro sim, quilómetro não, há uma estação de serviço, são mais que as mães. Em Portugal se pensamos parar para alguma necessidade seja ela qual for ou vamos à que se aproxima ou então teremos nova oportunidade daí a 40 Kms. No país ao nosso lado damo-nos ao pequeno luxo de decidir parar onde bem nos apetecer já que são aos molhos, compreende-se, o país é grande e serve de entremeio para o resto da Europa.

Antes a procura era acrescida pelos preços do combutível mais barato que os países que lhe fazem fronteira, porém atualmente já não é justificação para se ir a Espanha nem por preços nem por produtos, talvez agora o interesse seja outro, o da cultura.

Aos 315 Kms seguidos sem descansar, perto duma saída para Valladolid, parámos numa estação de serviço. Havia o serviço de combustível com uma pequena loja de conveniência e um hostel com um café na parte de baixo do edificio, deviam ser umas três e meia da tarde, quando me aproximei da entrada, o ruído era o tipico espanhol, concentrados maioritariamente na zona do balcão, falavam pelos cotovelos, rápidos, extremamente barulhentos, bebiam imenso alcool.

A servir havia três funcionários, um falava com três clientes, outro esfregava rodelas de laranja em copos de boca larga, enchia de gelo e carregava-o com gin, outro andava de um lado para o outro a disparar olhares dando-me a impressão que andava meio perdido sem saber o que fazer na confusão, neste momento senti-me totalmente ignorada, procurava trocos na carteira para o café que queria pedir, um homem aproxima-se do balcão com o seu copo de balão e pede mais gelo, é de imediato servido, olhava para mim como se eu fosse um extra terrestre ali caído.

Continuava sem ser atendida, pois claro que a minha pompa não me permitiu ali continuar e saí, o café já nem dado o queria.

Fui direto para a loja de conveniência dos combustiveís, perguntei se tinham café deduzindo que teriam uma máquina de meter moedas. Na ranhura do dinheiro havia um pequeno aviso que dizia “1,20” percebi que qualquer produto da máquina tivesse valor único. O copo saiu vazio, o rapaz estava de olho e foi ter comigo, meteu moedas dele e saiu mais um copo vazio, insistiu e saíu um jato de água a escaldar mas sem copo.

Entretanto entra um cliente para pagar combustível e em seguida o telefone da loja toca, o rapaz atende, ainda assim via nele a preocupação em me atender e ser prestável, eu só pensava na dificuldade que estava a ter para tomar um café mas sentia uma espécie de conforto. Após várias tentativas e esperas de que a máquina fizesse um reset sai finalmente um café estranhamente agradável.

De facto, os espanhóis têm uma boa quantidade de serviços nas estradas mas nesta foi um sofrimento para a toma de um café, ainda assim num espaço de vinte metros reconheci que o atendimento e o produto são bastante diferentes entre um estabelecimento grande, bonito, agradável, fresco e um de pequena dimensão, muito quente no interior, com aspeto interior a desejar mas ainda assim fui bem atendida e satisfeita com o melhor café que alguma vez tomei em Espanha.

Nem tudo o que reluz é ouro! A próxima vez que por ali andar e chegar aos 315 kms paro para tomar café na loja do combustivel.

 

 

A passagem de ferry

05.07.22, Dulce Ruano

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Com conhecimento de causa no que toca a fazer transfers de ferry e sem pensar que nem todos os ferrys são como os que já fiz de perto da avenida luísa Todi para Troia, saiu-me penoso não ter tido a precaução em perceber que o ferry onde me ia a meter desta vez não era para Tróia.

No contexto duma viagem que fizémos do sul de França para Córsega com o nosso carro,ao chegarmos ao porto de embarque deparamo-nos com um navio tão gigante que por pouco o comparei com o navio de um cruzeiro que me recuso fazer até ser bem velhinha e ter idade para entrar num lar.

A zona onde se acomodavam os carros era de dois andares, o nosso ficou no piso térreo mesmo encostado à entrada para o interior onde havia escadas e elevadores e que toda a gente subia desenfreadamente. Misturámo-nos com os outros passageiros, reparei que transportavam alguns pertences, sacos, mochilas e cães ao colo, os verdadeiros “chiens fançaises”. Subimos também com a ideia de visitar o interior, ver o que tinha, como eram as vistas no último andar, sentir que era naquele espaço que íamos viver nas próximas 11 horas.

A partida do ferry foi rigorosa, às 7h da tarde começou a andar, chegaria à ilha de Córsega às 6h da manhã do dia seguinte, não marcamos cabine para dormir por acharmos que não se justificava o preço e idealizando que passaríamos a noite no nosso carro, trazíamos todas as condições para passar a noite inclusivamente comida pelo que a única coisa que levei comigo para o interior do navio foi uma pequena mochila com algum dinheiro e o telemóvel com 20% bateria.

Verdade que nunca tinhamos andado num ferry tão grande muito menos tantas horas e muito menos numa viagem noturna. Por volta das 20h decidimos ir ao carro para trazer comida, já havia imensas pessoas a comer em vários lugares exteriores e nos restaurantes, iriamos também fazer o nosso banquete, tínhamos caminhado bastante a conhecer uma grande parte do navio, estavamos cansados e esfomeados. Havia imensos corredores que davam para as cabines dos dormitórios, salão de jogos, salas de diversão para a criançada, vários restaurantes, loja de conveniência, bares, piscina e diversas salas com mesas, cadeiras e sofás.

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No andar do cimo com uma parte ao ar livre estava um bar, piscina, zona de espreguiçadeiras. Queriamos aproveitar tudo, subiamos, desciamos, e a maior parte das vezes já nem sabiamos onde andávamos.

JM desceu ao andar dos estacionamentos e deu com o nariz na porta, estava tudo trancado, dirigiu-se à recepção a explicar que pretendia ir ao carro porém dizem-lhe que seria impossível, foi ao meu encontro na esperança de que, desenrascada como sou e expert em arranjar solução para tudo, haveria de conseguir dar a volta ao assunto.Foi com esse intuito que me dirigi à recepção e explicar o quão era importante termos acesso ao carro e que o fariamos no menor tempo possível. Não fui, de todo, bem recebida, a senhora além de antipática, foi brusca e de muitos maus modos dizendo-me que ir à zona dos carros seria “dangerous”.

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Deu-me vontade de chorar. Não tinhamos a nossa comida e preocupava-me bastante onde e como iriamos passar a noite, como havíamos de passar as 10h de viagem que ainda faltavam. Já me bastava a afronta de andar em mar alto quanto mais enfrentar o problema de logistica que se estava a ver que tinhamos de enfrentar e não sabíamos como.

Comecei por resumir a parte boa do problema, tinha algum dinheiro e cartão para pagamentos, bendita hora que levei a mochila comigo, assim a parte da comida estava assegurada mas depois passei a resumir a parte má: Não tinhamos onde dormir, estavamos com pouca roupa, manga curta, eu de saia, JM de calção. De noite ia arrefecer e teriamos frio, como se não bastasse, no fim do jantar fomos procurar um sofá para nos encostarmos mas muitas outras pessoas, as prevenidas, fizeram o mesmo e anteciparam-se e aí começamos a perceber também porque víamos tanta gente nos corredores, recantos e afins em postura de descanso e prevenidos pois estavam cobertos com mantinhas e sacos cama.

Pensámos em juntar umas cadeiras, ou ficar num canto de alguma sala mas não tinhamos nada para nos poteger além de que as salas estavam frescas. Por alguns momentos senti-me em pânico e apesar de passar por muitas experiências nas viagens que faço esta foi uma novidade e naturalmente serviu-me de aprendizagem, é que o regresso vinhamos da Sardenha (entretanto tinhamos mudado para lá) durante 12h também de noite e viémos prevenidos com tudo o que era preciso passar bem a noite.

Depois de termos dado uma série de voltas pelos imensos corredores e salas havia imensa gente a ocupar todos os cantinhos possíveis, as salas de estar não tinham espaço livre e a partir de uma certa hora fecharam os bares, restaurantes e todos os outros serviços. Nem um mísero casaquinho tinha comigo. Sentia-me tramada mas também sentia que haveria de arranjar uma solução até que após ter subido uma larga escadaria mesmo no extremo do navio que dava para o piso da piscina percebemos que no amplo espaço no cimo dessas escadas a temperatura era agradável pelo que fomos buscar duas espreguiçadeiras e recostámo-nos por ali.

Não foi fácil adormecer e de meia em meia hora olhava para o telemóvel, a bateria estava quase no fim terminando por completo por volta da 1h da manhã. Depois de algum tempo sem me mexer comecei a sentir frio nas costas, a tela da cadeira era sintética começando a tornar-se desagradável. Levantei-me meio estonteada, estudei o espaço à volta e decidi deitar-me no chão junto à parede de metal e vidro, pelo menos teria as costas protegidas, enrolei a mochila e fez de almofada.

A dada altura começo a sentir frio, as pernas estavam protegidas com a saia comprida mas os braços não tinha como lhes dar proteção, foi então que fiz da minha saia um saco cama, como era de elásticos finos na cintura, puxei-a até ao pescoço, dobrei as pernas e assim fiquei dento do meu casulo.

Tanto que desejei uma almofada, tanto que desejei um saco cama, uma mantinha, um cobertor, um edredão, até já pensava no carrinho dos lençois que tinha visto num corredor das cabines, para ser franca tive muitas saudades da minha cama.

Ia adormecendo, ia acordando, o navio seguia viagem em alto mar, havia sempre pessoas por ali a passar, algumas faziam “shiuuuu” outras falavam alto e batiam com as portas mas o tormento instalou-se quando um casal francês também por ali se encostou a poucos metros de nós e no inicio estava tudo bem, foram cautelosos enquanto se instalaram e o silêncio reinou.

De repente e num momento em que eu já estava novamente a entrar nas brasas ouço um ganido estridente que me fez saltar ao ar. No momento em que dou o salto de estremecida abro os olhos na direção do casal e vejo que tinham um caniche branquinho da cor da cale da parede cheio de caracóis numa espécie de permanente com uns olhitos negros e reluzentes, talvez reclamasse de frio, ou de falta de atenção, ou estaria farto da viagem, desconheço os seus motivos mas não se calava e a dona levanta-se com ele aconchegado numa mantinha junto ao seu peito com o intuito de o acalmar como se faz a um bebé e saiu. Por várias vezes foi com ele para o exterior.

Voltou e colocou-o num saco próprio, uma espécie de casinha de aspeto bastante confortável. Voltamos todos a adormecer porém o caniche estava endiabrado e volta a fazer uma espécie de um latido estridente que naquele silêncio se tornou horrível de ouvir e por mais que a dona o aconchegasse fez esta cena por várias vezes. Confesso que disse um bom par de asneiradas em bom português, estava cheia de sono, desconfortável, com frio, tinha a cabeça à roda até que eles decidiram ir embora dali. Fiquei sentada no chão com as pernas fletidas e dentro da minha saia, sentia a cabeça como se tivesse acabado de regressar de uma feroz montanha russa, via luzes tipo duns estalinhos, não conseguia pensar nem discernir e nisto abre-se a porta, passam umas pessoas e há uma francesa que volta atrás, baixa-se ao nível do chão onde eu estava e do estilo “estou por tudo” olha direto nos meus olhos e pergunta:

Vous avez une cigarette?” e eu indago “Quoi ?” e ela repete “Vous avez une cigarette?” e de forma mecânica respondo “Non, pardon”, levanta-se e diz ok descendo as escadas. C’a grande lata, pensei eu mais tarde, naquele momento era de todo impossível pensar.

Guardámos as espreguiçadeiras e fomos procurar outros espaços, já havia várias pessoas de pé, os sofás começavam a folgar, ainda me recostei um pouco num de veludo, entretanto começa a amanhecer e ouve-se uma voz a indicar que o pequeno almoço estava disponível. O ferry ia bastante devagar, rodeávamos a ilha de Córsega, às 6h da manhã foi-nos permitida a entrada nos carros, estava lá dentro um calor abrasador, o ambiente térmico era terrível, lá está, seria de todo impossível passar ali a noite e naturalmente que no regresso da ilha de Sardenha que era de 12 horas nos prevenimos de tal forma que até umas almofadas tínhamos. De facto, gato escaldado de água fria tem medo!

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