Com conhecimento de causa no que toca a fazer transfers de ferry e sem pensar que nem todos os ferrys são como os que já fiz de perto da avenida luísa Todi para Troia, saiu-me penoso não ter tido a precaução em perceber que o ferry onde me ia a meter desta vez não era para Tróia.
No contexto duma viagem que fizémos do sul de França para Córsega com o nosso carro,ao chegarmos ao porto de embarque deparamo-nos com um navio tão gigante que por pouco o comparei com o navio de um cruzeiro que me recuso fazer até ser bem velhinha e ter idade para entrar num lar.
A zona onde se acomodavam os carros era de dois andares, o nosso ficou no piso térreo mesmo encostado à entrada para o interior onde havia escadas e elevadores e que toda a gente subia desenfreadamente. Misturámo-nos com os outros passageiros, reparei que transportavam alguns pertences, sacos, mochilas e cães ao colo, os verdadeiros “chiens fançaises”. Subimos também com a ideia de visitar o interior, ver o que tinha, como eram as vistas no último andar, sentir que era naquele espaço que íamos viver nas próximas 11 horas.
A partida do ferry foi rigorosa, às 7h da tarde começou a andar, chegaria à ilha de Córsega às 6h da manhã do dia seguinte, não marcamos cabine para dormir por acharmos que não se justificava o preço e idealizando que passaríamos a noite no nosso carro, trazíamos todas as condições para passar a noite inclusivamente comida pelo que a única coisa que levei comigo para o interior do navio foi uma pequena mochila com algum dinheiro e o telemóvel com 20% bateria.
Verdade que nunca tinhamos andado num ferry tão grande muito menos tantas horas e muito menos numa viagem noturna. Por volta das 20h decidimos ir ao carro para trazer comida, já havia imensas pessoas a comer em vários lugares exteriores e nos restaurantes, iriamos também fazer o nosso banquete, tínhamos caminhado bastante a conhecer uma grande parte do navio, estavamos cansados e esfomeados. Havia imensos corredores que davam para as cabines dos dormitórios, salão de jogos, salas de diversão para a criançada, vários restaurantes, loja de conveniência, bares, piscina e diversas salas com mesas, cadeiras e sofás.
No andar do cimo com uma parte ao ar livre estava um bar, piscina, zona de espreguiçadeiras. Queriamos aproveitar tudo, subiamos, desciamos, e a maior parte das vezes já nem sabiamos onde andávamos.
JM desceu ao andar dos estacionamentos e deu com o nariz na porta, estava tudo trancado, dirigiu-se à recepção a explicar que pretendia ir ao carro porém dizem-lhe que seria impossível, foi ao meu encontro na esperança de que, desenrascada como sou e expert em arranjar solução para tudo, haveria de conseguir dar a volta ao assunto.Foi com esse intuito que me dirigi à recepção e explicar o quão era importante termos acesso ao carro e que o fariamos no menor tempo possível. Não fui, de todo, bem recebida, a senhora além de antipática, foi brusca e de muitos maus modos dizendo-me que ir à zona dos carros seria “dangerous”.
Deu-me vontade de chorar. Não tinhamos a nossa comida e preocupava-me bastante onde e como iriamos passar a noite, como havíamos de passar as 10h de viagem que ainda faltavam. Já me bastava a afronta de andar em mar alto quanto mais enfrentar o problema de logistica que se estava a ver que tinhamos de enfrentar e não sabíamos como.
Comecei por resumir a parte boa do problema, tinha algum dinheiro e cartão para pagamentos, bendita hora que levei a mochila comigo, assim a parte da comida estava assegurada mas depois passei a resumir a parte má: Não tinhamos onde dormir, estavamos com pouca roupa, manga curta, eu de saia, JM de calção. De noite ia arrefecer e teriamos frio, como se não bastasse, no fim do jantar fomos procurar um sofá para nos encostarmos mas muitas outras pessoas, as prevenidas, fizeram o mesmo e anteciparam-se e aí começamos a perceber também porque víamos tanta gente nos corredores, recantos e afins em postura de descanso e prevenidos pois estavam cobertos com mantinhas e sacos cama.
Pensámos em juntar umas cadeiras, ou ficar num canto de alguma sala mas não tinhamos nada para nos poteger além de que as salas estavam frescas. Por alguns momentos senti-me em pânico e apesar de passar por muitas experiências nas viagens que faço esta foi uma novidade e naturalmente serviu-me de aprendizagem, é que o regresso vinhamos da Sardenha (entretanto tinhamos mudado para lá) durante 12h também de noite e viémos prevenidos com tudo o que era preciso passar bem a noite.
Depois de termos dado uma série de voltas pelos imensos corredores e salas havia imensa gente a ocupar todos os cantinhos possíveis, as salas de estar não tinham espaço livre e a partir de uma certa hora fecharam os bares, restaurantes e todos os outros serviços. Nem um mísero casaquinho tinha comigo. Sentia-me tramada mas também sentia que haveria de arranjar uma solução até que após ter subido uma larga escadaria mesmo no extremo do navio que dava para o piso da piscina percebemos que no amplo espaço no cimo dessas escadas a temperatura era agradável pelo que fomos buscar duas espreguiçadeiras e recostámo-nos por ali.
Não foi fácil adormecer e de meia em meia hora olhava para o telemóvel, a bateria estava quase no fim terminando por completo por volta da 1h da manhã. Depois de algum tempo sem me mexer comecei a sentir frio nas costas, a tela da cadeira era sintética começando a tornar-se desagradável. Levantei-me meio estonteada, estudei o espaço à volta e decidi deitar-me no chão junto à parede de metal e vidro, pelo menos teria as costas protegidas, enrolei a mochila e fez de almofada.
A dada altura começo a sentir frio, as pernas estavam protegidas com a saia comprida mas os braços não tinha como lhes dar proteção, foi então que fiz da minha saia um saco cama, como era de elásticos finos na cintura, puxei-a até ao pescoço, dobrei as pernas e assim fiquei dento do meu casulo.
Tanto que desejei uma almofada, tanto que desejei um saco cama, uma mantinha, um cobertor, um edredão, até já pensava no carrinho dos lençois que tinha visto num corredor das cabines, para ser franca tive muitas saudades da minha cama.
Ia adormecendo, ia acordando, o navio seguia viagem em alto mar, havia sempre pessoas por ali a passar, algumas faziam “shiuuuu” outras falavam alto e batiam com as portas mas o tormento instalou-se quando um casal francês também por ali se encostou a poucos metros de nós e no inicio estava tudo bem, foram cautelosos enquanto se instalaram e o silêncio reinou.
De repente e num momento em que eu já estava novamente a entrar nas brasas ouço um ganido estridente que me fez saltar ao ar. No momento em que dou o salto de estremecida abro os olhos na direção do casal e vejo que tinham um caniche branquinho da cor da cale da parede cheio de caracóis numa espécie de permanente com uns olhitos negros e reluzentes, talvez reclamasse de frio, ou de falta de atenção, ou estaria farto da viagem, desconheço os seus motivos mas não se calava e a dona levanta-se com ele aconchegado numa mantinha junto ao seu peito com o intuito de o acalmar como se faz a um bebé e saiu. Por várias vezes foi com ele para o exterior.
Voltou e colocou-o num saco próprio, uma espécie de casinha de aspeto bastante confortável. Voltamos todos a adormecer porém o caniche estava endiabrado e volta a fazer uma espécie de um latido estridente que naquele silêncio se tornou horrível de ouvir e por mais que a dona o aconchegasse fez esta cena por várias vezes. Confesso que disse um bom par de asneiradas em bom português, estava cheia de sono, desconfortável, com frio, tinha a cabeça à roda até que eles decidiram ir embora dali. Fiquei sentada no chão com as pernas fletidas e dentro da minha saia, sentia a cabeça como se tivesse acabado de regressar de uma feroz montanha russa, via luzes tipo duns estalinhos, não conseguia pensar nem discernir e nisto abre-se a porta, passam umas pessoas e há uma francesa que volta atrás, baixa-se ao nível do chão onde eu estava e do estilo “estou por tudo” olha direto nos meus olhos e pergunta:
“Vous avez une cigarette?” e eu indago “Quoi ?” e ela repete “Vous avez une cigarette?” e de forma mecânica respondo “Non, pardon”, levanta-se e diz ok descendo as escadas. C’a grande lata, pensei eu mais tarde, naquele momento era de todo impossível pensar.
Guardámos as espreguiçadeiras e fomos procurar outros espaços, já havia várias pessoas de pé, os sofás começavam a folgar, ainda me recostei um pouco num de veludo, entretanto começa a amanhecer e ouve-se uma voz a indicar que o pequeno almoço estava disponível. O ferry ia bastante devagar, rodeávamos a ilha de Córsega, às 6h da manhã foi-nos permitida a entrada nos carros, estava lá dentro um calor abrasador, o ambiente térmico era terrível, lá está, seria de todo impossível passar ali a noite e naturalmente que no regresso da ilha de Sardenha que era de 12 horas nos prevenimos de tal forma que até umas almofadas tínhamos. De facto, gato escaldado de água fria tem medo!