Como termina um dia
Depois de uma semana de ausência fora do país, depois de ter chegado no domingo às 11h. da noite, o que é que eu preciso? Uns dias tranquilos … qual quê??!!!
Segunda-feira, primeiro dia de trabalho, completamente ao relantim, mole, ensonada, enfartada, meio enjoada até, azoada, tudo normal para o primeiro dia de trabalho do novo ano ….
Ao fim do dia debato-me com a ideia de que tinha de fazer jantar, já não cozinhava desde a noite de Natal! O que é que eu haveria de fazer para jantar, por um lado já sentia uma certa (das pequenas) nostalgia de voltar aos tachos e aos temperos mas completamente arrasada em ideias, ainda assim pensei num arroz de tomate malandrinho com uns filetes de pescada, não sei bem porquê mas foi uma ideia que me surgiu e que fui dando alguma importância.
Pelas 4 e meia da tarde liga-me o Duarte:
“Tou, mãe, olha é só para te dizer que hoje vêm cá os meus amigos e ficam para jantar!”
“Ahhh, ah é? Hmmm muito bem, então e que levam para jantar?”
“Ohhh então logo se vê, mas não te preocupes que nós tratamos disso”
“Ahhh ok, então vê lá se precisas de alguma coisa, liga pelas 5h para eu me organizar caso seja preciso fazer algum compra”
Coloca-se a dúvida sobre o Covid mas afinal preveniram-se e fizeram testes, deram todos negativo. Algum descanso e alento se bem que nos dias de hoje nada é certo. Saí do trabalho às 5 e meia e, claro, o Duarte não tinha telefonado, liguei:
“Então Duarte, esqueceste de ligar à mãe?”
“Ohhh, então, ó mãe, já sabes como isto funciona, então, olha, é assim”
“Mas já sabes se é preciso comprar alguma coisa?”
“Ahhh não, olha eles todos trazem pizza, não é preciso nada”
Pelo sim, pelo não passei no Lidl, comprei umas bebidas, salsichas, queijo fatiado e massa filo porque a folhada estava esgotada.
Chego a casa. Estavam todos na sala a prepararem o ambiente com escuridão total para a praxe que têm em grupo, ver um filme de terror. Até lhes fui pôr uma vela sobre a mesa de apoio dizendo-lhes que era para afastar os espíritos do filme, fartamo-nos de rir….
Nisto Duarte vem ter comigo a perguntar o que é que eu tinha comprado porque queriam deitar a mão à tigela enquanto viam o filme, fiquei sem chão, bolas, tinha chegado duma viagem de 7 dias, cansada, sem tempo de ter feito as compras habituais cá para casa, possas, fiquei mesmo arreliada, com ele e comigo mas lá me suportei com a ideia dos folhadinhos de salsicha e queijo que ia fazer. Para garantir, telefono ao JM para passar no hipermercado trazer mais umas pizzas e uns aperitivos, quando chegou parecia o Pai Natal em formato XXXXXL.
Mesmo em casa e levando com a ideia que tinha um grupo de teenagers continuava em modo relantim, preparei os folhadinhos no maior tabuleiro de ir ao forno, eles já tinham saído da sala e estavam no andar de cima no salão de jogos a dar tacadas nas bolas de snooker, no ping pong, nos matraquilhos, davam grandes risadas, falavam alto e de vez em quando vinham-se abastecer de bebidas ao frigorifico da cozinha lançando elogios sobre o cheirinho bom que vinha do forno, ansiosos que o tabuleiro saísse, subi as escadas, os olhos deles arregalaram-se mas antes de o pousar na mesa lancei o seguinte recado:
“Deixo este tabuleiro aqui numa condição, ai de algum de vocês pegue num folhadinho sem limpar as mãos a um guardanapo, não se atrevam a deixar dedadas de gordura onde quer que seja que eu escancaro-vos!!”
Eles imediatamente se organizaram até que um disse “Maltinha, o melhor será já cada um pegar num guardanapo, não vá acontecer algum imprevisto”. Aquilo tranquilizou-me. Saí.
Cheguei à cozinha tinha umas 10 pizzas e uma lasanha para meter no forno, respirei fundo para esta nova etapa, encaixei o máximo possível em 3 patamares, no do fundo meti a lasanha na própria embalagem.
Abria, fechava, trocava as travessas, umas para cima, outras para baixo, outras ficavam um pouco sobrepostas, umas já estavam prontas, tirava, controlava o tempo de outras que tinham entrado um pouco mais tarde, à medida que saíam punha alumínio por cima para as manter quentes, a lasanha manteve-se por mais tempo e nos entretantos decidi fazer o tacho maior com arroz branco a pensar no meu jantar e no do JM e até quem sabe de mais alguém que quisesse.
Quando demos por ela e à medida que abrimos o forno para mais umas trocas veio um cheiro estranho, afinal a embalagem da lasanha não aguenta a temperatura do fundo do forno começando a derreter-se na parte de baixo, fiquei lixada, ora bolas, tinha de ver quem a tinha trazido e pedir desculpas pelo sucedido mas imediatamente compreenderam que a nossa investida para tratar de tudo não foi nada fácil, eles até diziam “Ahhh deixa lá, não há problema, há muita pizza, ainda por cima vocês chegaram ontem de viagem devem estar cansadas, muito estão vocês a fazer” de facto, confesso, aquilo acalentou-me.
Tinha a minha cozinha transformada numa semi-industrial, depois era preciso pôr a mesa na sala, arranjar assentos para todos, podiam não ser precisos mas na mesma deixei lá pratos, garfos, facas, copos, bebidas e os guardanapos, alguns usaram outros não, fizemos fotografias, contámos piadas e afastei-me para a garagem para fazer um telefonema, precisava de relaxar um pouco…
Na garagem percebo que tinha a máquina cheia de roupa lavada a aguardar o estendal, possas, que seca, ainda tinha mais aquela tarefa, só pensava no saco enorme que lá tinha cheio de meias, levei para a zona da cozinha com o estendal, olhei para as horas, eram 11h da noite, foi neste momento que senti fome e percebi que ainda não tinha jantado, já não me apetecia o arroz, fervi um pouco de água e fiz um prato de Cérelac com intenção de ir logo para a cama.
Encostei-me no sofá da sala com o prato da farinha, liguei a televisão, estiquei as pernas e assentei os pés em cima da mesa, precisava apenas de 5 minutos mas ao segundo minuto o meu corpo já dava sinais de pré-relaxamento o que não permitiu levantar logo e ir estender a roupa, deixei-me ficar.
Passado um bocado a maltinha descia do salão de jogos numa grande algazarra, vestiam os casacos e percebi que estavam de abalada, dois deles pediram-me máscaras porque tinham chamado um táxi e não podiam entrar sem a máscara, custou-me muito mas lá me levantei do sofá, ao passar pela cozinha defronto-me com a roupa por estender, ai que vontade de subir uma parede, decidi não adiar mais e comecei a tratar do assunto, ao mesmo tempo ouvia alguém ao telefone:
“Ahh não está disponível, ohh que pena, obrigada e boa noite”; “Hmm, está em serviço, ok, obrigada e boa noite!” – ouvi isto várias vezes até que Duarte se aproxima e pergunta de uma maneira simpática e humilde se haveria alguma mínima hipótese de os irmos deixar à cidade mas teríamos de levar 2 carros, veio o amigo que é como se fosse lá da casa e disse altivo “Ahhhh nem penses pedir isto à tua mãe, meu, já viste as horas, quase 1h da manhã, os teus pais estão cansados, vieram de viagem ontem, trabalharam hoje todo o dia, aturaram-nos aqui todo o serão e tu ainda tens coragem de pedir uma coisa destas, tás doido, meu”, vira-se para mim e disse “a sério, não é preciso, nós cá nos havemos de arranjar, vamos a pé” apenas lhe disse “só falta estender 3 pares de meias, depois fazer um xixi que quase faço pelas pernas abaixo e é só entrar para o carro”.
Por mais que ele insistisse eu já tinha decidido ir, JM também já estava em ação. Foram andando, apanhei-os a 300 metros de casa, estava bastante escuro, havia muito nevoeiro, muito frio, o melhor disto tudo é que estava preparada mentalmente para o fazer, o poder de transformação que tenho em mim para me adaptar tornando-me numa perfeita camaleoa (de camaleão, subentenda-se) dá-me forças e coragem para suportar o que necessito nos momentos mais instáveis.
Deixei-os na cidade, vinha a descer quando JM subia com outro carro, entrei para a garagem, o cão saiu, dormiu no terraço, não me obedeceu mas aquela hora já era tudo normal, pensei que daí a umas horas era um novo dia de trabalho, voltei a ganhar forças e mentalizei-me que sou uma aventureira nata, de comodista não tenho nada, de mãe picuinhas e flácida é que não tenho mesmo nada, sou tipo dum sargento em casa, austera e sempre que possível trago tudo na linha porém também reconheço quando devo ser flexível e tolerante e desta vez tinha de ser assim, normalmente não permitiria subter-me a tanto mas quando sinto que são os momentos que o devo fazer, faço.
E não, não faço as vontades aos filhos, há regras, desde pequenos que lhes dei a oportunidade de fazerem tarefas domésticas o que lhes desenvolveu uma boa autonomia e independência o que faz serem hoje desenrascados e responsáveis com a lucidez apurada para quando o pai e mãe não estão presentes.
Quando cedo a algum capricho não é de forma nenhuma para compensar algo, nem tão pouco para ficar bem no quadro, é porque me apetece fazê-lo, é o momento certo de perceberem que quando sou austera é para cumprir mas que também há momentos da vida que temos de ser flexíveis e resilientes.
E por falar em flexibilidade e resiliência, neste dia, ou melhor, nesta noite, a história terminou às 04h da manhã com JM a ir buscar Duarte à cidade. Acredite quem quiser, quem não quiser não acredite. É uma vida bastante animada e o tédio não entra.