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A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

Assim se fica sem jantar

16.11.19, Dulce Ruano

Sem Jantar.jpg

Era sábado e fui à praça. Sim, à praça, maioria das pessoas dizem “mercado” mas fui habituada ao termo porque cresci numa época em que toda a gente dizia “praça” e para mim não havia outro termo senão este.

O som desta palavra entra-me nos ouvidos como se uma coisa intima e pessoal se se tratasse, como se fosse uma parte física de mim e só me pertence a mim, em certa parte o é.

Quando vou à praça aos sábados de manhã, para além da nostalgia que sinto, encanta-me aquelas bancadas de frutas, de verduras, gosto da vitrine dos bolos mesmo não sendo iguais fazem-me lembrar os bolos de quando era miúda, gosto da mistura de cheiros, gosto da azáfama das pessoas às compras, o regatear dos preços, os olhares das vendedoras sobre os clientes a passar.

Quando vou raramente levo uma idéia do que vou comprar, mas sei que venho carregada com imensas coisas e com a sensação de ter investido bem o meu dinheiro, produtos da época e naturais.

Fui e dirigi-me ao talho onde há sempre muita gente e as pessoas esperam montes de tempo para o atendimento, tive sorte, havia três ou quatro pessoas na minha frente, esperei e prestes a ser atendida chega uma senhora com aparência já de alguma idade, mais de oitenta, muito bem arranjada, nisto perguntam do lado de lá do balcão, “quem está a seguir” e a senhora diz “sou eu” e eu indago “desculpe, mas eu cheguei bastante antes da senhora” e ela “ah, com certeza, nem me apercebi, não leve a mal”, reparei que era boa senhora, foi educada e atenciosa, este factor deixou-a por cima, sem dúvida, é certo que eu lhe podia ter dado a vez, aiii, mas eu tinha tanta pressa, entretanto um funcionário atende-a também a ela.

Peço umas iscas de fígado e ela pede um quilo, veja-se bem, um quilo de rins!! Fiquei intrigada, ós anos que não comia rins e para ser franca não senti saudades de tal no entanto aquilo despertou-me curiosidade, reparei que o senhor que a atendia os limpou muito bem, abriu-os ao meio, removeu os canais urinários, gostei do aspecto daquilo e enquanto me cortavam as iscas de fígado, viro-me para a senhora “permita-me perguntar-lhe, como arranja os rins?” e ela de uma simpatia enorme me explicou os temperos e a forma de cozinhar, agradou-me de tal modo que quando o senhor lhe entrega os rins digo para ele “apesar de estar a ser atendida pelo seu colega, gostaria que o senhor me preparasse quatro rins que esta senhora já me deu a receita de como os preparar”, “com certeza”. Recolho aqui a primeira receita e continuo nas compras toda satisfeita com a conquista.

Do talho passo para as frutas e verduras, dou uma vistoria por todas bancadas, trago azeite que já estava encomendado, olho para os bolos mas não compro, vou saltitando de bancada em bancada, vou comprando umas coisas, vou dando uns dedos de conversa às senhoras que vendem, falamos das suas produções, das terras, do tempo conforme tem afectado as colheitas e que também me afectou com as pequenas produções do meu quintal e termino na banca de uma senhora que é mais conhecida que outras, pomo-nos na conversa, mando cumprimentos para um casal bastante idoso que conheço lá da terra dela (que história esta! de como conheci este casal) e comprei-lhe algumas frutas: figos, peras, alperces e cerejas. Falávamos sobre as várias qualidades de cereja que ela tinha e diz-me “olhe, vou-lhe dar uma receita de bolo de cereja”, “ah é? Então diga lá que eu tomo nota e faço-o ainda hoje”, “Então leva: três ovos, meio quilo de cereja sem caroço, meia chávena de açúcar, meia chávena de óleo ou azeite, uma chávena de farinha”, “hmmm…”, “Olhe que é muito bom”, “Obrigada, vou fazer esta tarde”…. Ai, e fiz mesmo, ficou tãooooooo bommmmmmmm. Mais uma receita e termino a manhã por ali, carregada de compras e alma cheia de coisas boas.

Tão bom estas experiências, estas trocas, tudo muito bem até aqui. Guardei os rins no frigorifico.

Dia seguinte de manhã preparei o tempero, Duarte perguntou o que era, disse-lhe que era carne para o jantar, disse assim para o afastar da curiosidade.

Fim da tarde comecei a preparar os rins tal como a senhora me indicou, fiquei tão empolgada e convencida que ia sair dali um pitéu que nem pensei num plano B para o caso de a alguém não lhe agradar, estava mesmo convencida que todos iam dizer “Hmmmm tão bom, isto está mesmo bommm, que delicia”, para ser sincera interiorizei isto de tal forma que passou a ser música para os meus ouvidos até nos sentarmos à mesa.

Verdade seja dita, a travessa ostentava uma rica cebolada de rins, até os parti aos pedaços, estavam com um aspecto maravilhoso, acompanhava com arroz branco e alface, todos começaram a torcer o nariz porém achava que quando experimentassem um pouco iam devorar e chorar por mais, mas qual quê, puseram mesmo só um bocadinho muito pequenininho no prato para eu não reclamar que não provavam, olhámos os quatro uns nos outros e ficámos em silêncio, eles para não me fazerem sentir mal e eu para não dar o braço a torcer, e para não dar mesmo a torcer nadinha nadinha enchi o meu prato de cebolada de rins e tentei comer, que esforço danado e deles os três ouvia-se “Vê-se mesmo que a mãe tá a fazer um grandioso esforço para comer”, mas nem disse nadinha, continuei a fazer o grandioso esforço!

Enquanto comia (blarghhhh) só pensava naquela senhora que me deu a receita, ela comprou um quilo!!!

O jantar foi um desastre, só comeram o arroz e a alface, bem melhor que comerem só os rins, ora!