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A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

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Gritaria de cortar o coração

27.03.21, Dulce Ruano

Menina grit.jpg

Há uma velha expressão que todos conhecem e quem não conhece passa a conhecer: “Quem não chora não mama”, de pequena não entendia o significado e sem saber o punha em prática, confesso que algumas vezes sinto compaixão das pessoas que me aturaram quando chorava porque queria.

Esta imagem foi encontrada num site relacionado com comportamentos estranhos de pessoas, desconheço o autor, no rodapé pode ler-se que veio duma rede social, quando a vi revi-me imediatamente na menina de vestido branco que está mais ou menos ao meio das raparigas de vestido de preto.

Das muitas choradeiras que tinha quando pequena, lembro-me de uma em particular, teria uns seis, sete anos, vivia na quinta um bocado afastada da aldeia, era preciso ir a pé para depois se apanhar o autocarro para a cidade, apesar de termos o nosso próprio carro, a minha mãe usava o transporte público.

Era frequente a minha mãe ir à cidade todos os sábados de manhã, juntava as necessidades para optimizar o tempo e andava sempre a correr dum lado pró outro para aproveitar a abertura das lojas que fechavam todas à uma da tarde.

 

Via a saída dela aos sábados como um belo escape para sair da quinta onde não havia mais crianças para passar o tempo e também para ir ver o mundo bastante diferente do que tinha à minha volta toda a semana, gostava de apreciar o movimento dos carros, das pessoas, das coisas da cidade inclusive a viagem no autocarro já me consolava, o problema é que havia sábados que me tornava um empecilho para a minha mãe devido aos seus afazeres, nestas ocasiões ela preparava-se às minhas escondidas para não lhe fazer barreira só que andava sempre “à cóca” e dava conta o que era sempre um problema e armava uma gritaria infernal que ela não aguentava e acabava por me levar.

 

Mesmo à porta da nossa casa havia um caminho de terra batida que nos levava à aldeia, tinha primeiro uma reta extensa e só bem lá ao fundinho é que curvava ligeiramente onde deixavam de se ver as pessoas. Uma vez, já a minha mãe ia ao meio da reta quando a descobri toda aligeirada para o autocarro, montou-se logo ali o maior drama deste mundo, gritei até mais não, ós ais pela minha mãe que me levasse mas ela fez-se de forte e nem olhava para trás.

 

A minha afronta era tão grande, via a minha oportunidade a fugir que montei o maior estardalhaço possível, abri as goelas no volume máximo e dando a parecer que estava a ser esquartejada os meus gritos eram de cortar o coração a qualquer alma, completamente lavadinha em lágrimas e por mais que a minha mãe tentasse fazer coração de gelo, a minha sinfonia gritante era de arrepiar. Ela não resistiu a tamanha gritaria e mesmo estando em cima da hora do autocarro voltou para trás.

 

Sei que não vinha nada bem disposta, os olhos dela metiam dó, a expressão era negativa mas passou-me ao lado pois resultara a minha luta e passei de uma menina desesperada a feliz, a partir dali ela só dizia que tínhamos de despachar e fomos bastante aceleradas pela reta fora, ia de tal maneira airosa de felicidade que em vez de caminhar ia aos saltinhos pé ante pé, aquela forma de andar além de me dar o impulso para uma passada mais rápida era a verdadeira manifestação de alegria mas a minha mãe repreendia-me que não fosse aos saltos pois corria o risco de cair e seria o cabo dos trabalhos.

 

A faltar uns quinhentos metros para a paragem do autocarro tínhamos de descer uma enorme rampa, era no inicio dessa rampa que começava o alcatrão, como acabava ali a terra batida havia sempre areias mais grossas o que me provocaram um grande despiste aterrando de tal maneira que me esbardalhei por alguns metros abaixo.

Acho que me lembro de ver umas línguas de fogo saídas dos olhos da minha mãe e ainda uns sons estranhos da boca dela.

 

Naquele momento os meus sentidos ficaram muito confusos: Não conseguia perceber se sentia dor ou mágoa ou arrependimento, sei lá o quê. Foi um momento muito complicado de gerir mas sei que apesar de me apetecer chorar muito de dores fiquei em silêncio, não tive coragem de dar um ai, os meus joelhos estavam deitados abaixo, tinham muitas feridas com terra e areias grossas agarradas, nem sabia bem que fazer se olhar para os joelhos ou para o vulcão prestes a rebentar acima dos ombros da minha mãe, o sangue corria pelas pernas abaixo misturado com pó e areia.

 

A minha mãe, de tal maneira furiosa seguiu em frente, a decisão estava tomada, era tipo dum castigo, “eu avisei-te, agora vais assim”! Chegámos à paragem, fomos as últimas a entrar para o autocarro, este arrancou de imediato, por baixo do meu assento o sangue corria e só quando chegámos à cidade é que a minha mãe me limpou as feridas numa fonte.

Não há crianças difíceis, são mas é umas incompreendidas, ainda recordo aquelas feridas como uma troca pela felicidade portanto acabei por não lhes dar grande importância até porque passadas umas semanas as crostas começaram a cair e os joelhos ficaram impecáveis.

 

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