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A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

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O Kispo vermelho

19.10.21, Dulce Ruano

Autocarro.jpg

Este gostar de ser livre nem sempre foi meu aliado para momentos felizes, o que faz sentido, ser-se livre acarreta muita responsabilidade sobre façanhas e modo de se viver em sociedade e isto por vezes causa-nos traumas que nos acompanham para toda a vida. Estes traumas que me refiro são de inteira responsabilidade pessoal, são de decisões tomadas pessoalmente e que arriscamos pôr em prática, por vezes condenadas pela sociedade que não tem mais que fazer do que reparar na nossa liberdade e depois criticar.

No decorrer de qualquer estação do ano, quando há dias que em vez de calor está frio ou em vez de frio está calor, tenho sempre um trauma a latejar em mim que me leva a viver uma situação que na altura foi mesmo complicada de gerir mas que hoje, graças sei lá eu a quê, quando se me desperta me dá vontade de rir e rir bastante pois consigo pôr-me em forma de drone vendo bem a cena do alto.

A mãe tinha-me comprado no inverno um Kispo lindo de morrer, chegava ao meio da coxa, apertava com molas prateadas, na cintura tinha um atilho que saía de um orifício em cada lado, adorava apertar e desapertar aquele atilho, o tecido fazia, ao toque, o barulho característico de um kispo, adorava ouvir aquele som de roçar as mangas sobre as laterais do corpo, sentia-me protegida e não era propriamente da sua função era mesmo pelo arcaboiço que me provocava, tipo “I’m a Queen, let me go”. O Kispo era vermelho o que lhe conferia alguma visibilidade mais notória.

A minha casa era mesmo junto a uma gigante fábrica têxtil, de frente da mesma estava a paragem de autocarro com quem partilhava com umas dezenas de funcionários que saíam do seu turno às 3h da tarde, o autocarro passava às 3:05h que às vezes usava quando as aulas começavam às 3h e meia.

Saía de casa três ou quatro minutos depois das 3h, ainda havia imensas pessoas a atravessar o átrio da empresa logo de seguida atravessavam a estrada e iam entrando sem aquilo nunca mais acabar, eram todos tão simpáticos que aqui a chavaleca ficava sempre para o fim, era uma espécie de a última sardinha a encaixar na lata.

O autocarro era enorme, branco e vermelho e na parte de trás tinha um espaço amplo que apenas tinha tipo duns tubos metálicos para as pessoas se agarrarem durante a viagem, eu, claro, no meio daquela confusão mal era vista, sentia-me totalmente abafada com tanta gente mais os malotes dos almoços que me batiam na cabeça, eram encontrões até chegar à paragem da escola, falavam e riam-se muito alto, acho que era a forma de desanuviarem depois de um dia de trabalho.

Andava no liceu, teria uns 13 ou 14 anos, íamos a mais de meio da Primavera, quase cheirava aos dias quentes de verão, o Kispo já estava arrumado no armário, com muita pena minha e parece que todos os dias desejava que chovesse para ter um motivo de o vestir mas os dias quentes e secos apoderaram-se.

Um dia em que estava para apanhar o tal autocarro, uns 5 minutos antes de ir para a paragem começa a chover, sentia-se o aroma de terra molhada e quem ficou aos pulos de alegria por chover, quem? Pois, tão contente que fiquei que só pensava no kispo vermelho, sentia que tinha uma justificação para o vestir.

Dirigi-me para a paragem, mãos enfiadas no fundo dos bolsos e felicíssima, inchada de prazer, sentia que ia fazer furor perante tanta gente e o quanto desejariam ter um kispo como o meu. Como sempre fui a última a entrar até me lembro de pensar porque me deixavam para o fim naquele dia, era a sensação do momento e, bolas, que nem assim.

O autocarro arranca e logo de seguida começo a sentir um basborinho estranho acompanhado duns risinhos por baixo do bigode um tanto irónicos, demorei a perceber o que se passava, pois também achava estranho que a maior parte das mulheres que iam sentadas e também alguns homens viravam-se para trás a tecer comentários acompanhados do tal riso fininho.

Enlatada e a levar com as quinas dos malotes, comecei a perceber que era, afinal, o centro das atenções, o problema é que aquilo soava-me a gozo e percebo que era tudo sobre mim porque afinal já não chovia, o sol estava bastante quente e eu de kispo subiram-me uns calores insuportáveis de aguentar, sentia a cabeça à roda e desejava que o autocarro parasse na próxima paragem que por acaso era a da escola para me livrar de toda aquela ironia sobre mim.

Assim que se abriram as portas saí de uma saltada só, queria-me livrar daquilo tudo e esquecer mas depois lembrei-me que se fosse para a escola a aula estava quase a começar poderia ser alvo de mais um assalto de gozo pelo que nem pensei duas vezes, sigo a pé com grandes passadas para casa onde me enfiei e não saí mais de lá naquele dia.

Naturalmente que nas semanas seguintes fiz sacrifícios e evitei aquele horário de autocarro até que todos se esquecessem de mim, depois passou, agora quando penso neste episódio concluo que quando não temos segurança em nós próprios a vida se torna mais dificil. 

Garanto que se um dia encontrar um kispo igual ou semelhante compro e hei-de usar todas as vezes que me apetecer, faça chuva ou faça sol! :)

 

 

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