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A Sorte da Raposa

Partilha de emoções, experiências, reflexões ❤

A Sorte da Raposa

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Tanto e Tanto

04.05.20, Dulce Ruano

Flor_cerejeira.jpg

Nos meus primeiros dez anos de vida vivi na quinta dos meus avós. Distante da Aldeia, a uns 3 Kms onde estudava na escola primária, ia todos os dias a pé e levava comida para todo o dia, se bem que pelos intervalos derretia-me ir ao café da Ti Maria pedir pastilhas Gorila, dizia que a minha avó logo pagava, depois esquecia-me de lhe dizer e a Ti Maria quando a encontrava dizia-lhe “Ó Sra. Maria olhe que a sua neta tem lá uma dívida de pastilhas” que vergonha, e tantos raspanetes que eu levava, mas não tinha emenda, continuava a levar fiado enquanto decorria o ano escolar!Gorila.jpg

Aquela quinta, o meu mundo, explorava tudo o que lá havia, os cultivos dos meus avós, as presas e os regos que serviam para regar as plantações, a fonte onde bebia água, as rãs que eu adorava ouvir cantar, que belas orquestras ali assisti, belíssimas.

Conhecia todos os cantinhos, socalcos, vinhas, os respingos da vindima, sabia exaustivamente onde estavam as videiras com as uvas mais doces, assisti à produção artesanal do vinho, da aguardente, da colheita da azeitona, adorava subir pela escada até ao cimo da oliveira, conhecia as árvores todas, trepava figueiras, pereiras, macieiras, pessegueiros, medronheiros, cerejeiras, marmeleiros, romãzeiras, corria tudo, conhecia todos os sitios onde havia água, as nascentes onde encontrava salamandras, trintélhos e apanhava agriões.

Brincava com os cães, os gatos, as galinhas, os patos, os coelhos, as cabras, as vacas, assisti às ordenhas e a partos onde ficava maravilhada com o nascimento dos bezerros, assim que saíam do útero da mãe caíam no chão desengonçados e tinha pena deles, coitadinhos, mal se levantavam e equilibravam nas pernas altas, magras e débeis próprias dum recém nascido.

Vi ovos a eclodir, a saírem pintainhos e patinhos, lembro-me das afrontas da minha avó a proteger estes pequeninos dos milhafres famintos e também da agonia que ela sentia quando descobria o galinheiro atacado por raposas e levavam as galinhas de noite, havia um rasto de penas por todo o lado nessas manhãs ao acordármos.

Pouco abaixo da quinta tinha o rio, a água era cristalina e límpida, tanto banho que ali tomei, tanta roupa que se ali lavou sobre as pedras, tantas horas que passava dentro de água, tanto contacto tive com os peixinhos minúsculos à volta das minhas pernas e pés, mal eu sabia que aquilo era uma terapia, brincava com eles,  passava o tempo a tentar apanhá-los mas eram muito rápidos e espertos, conheci as rochas todas daquela zona de rio, conhecia os rápidos e as fonduras de cada centímetro do rio.

Quando as árvores de fruta começavam a dar flor no inicio da Primavera visitava-as em permanência, depois caía a flor e aparecia o fruto verde e pequeno, todos os dias havia transformação e a fruta tomava a sua forma, a cor, o tamanho, o aroma até chegar o momento de comer, via os figos a crescer,  as uvas a pintar as videiras, os morangos eram uma perdição, quando chegavam as primeiras cerejas nem as deixava amadurecer, saltavas-lhes para cima.

Não houve cerejeira ou gingeira que não conhecesse o peso do meu corpo, a ginástica que lhes fazia em cima de ramo em ramo, conheci-as todas ao ponto de saber quais davam as primeiras e as últimas cerejas, havia uma em particular de estimação, era a mais pequena, a mais velha e antiga daquela quinta, ficava mesmo nos últimos metros do limite dos terrenos, a qualidade dela era das melhores de todas, sabia a mel de tão doce que era, custava-me imenso ir ter com ela mas de tão boa que era atravessava tudo para lhe chegar, passava lá horas para compensar o sacrificio de passar pela quinta toda de uma ponta à outra, quando descia vinha tão pançuda que quase me rebolava de tanta cereja que trazia no bandulho.

Hoje, quando penso nisto arrepio-me só de pensar no perigo a que estava exposta, uma parte desta cerejeira estava posicionada na parte de cima dum poço que o meu avô tinha mandado abrir uns anos antes para servir de regadio à cultura daquela zona, ainda me lembro de ver uma máquina amarela gigante a retirar terra aos montes e lembro-me de ver a veia de água que começou a brotar e a pouco e pouco começou a encher o poço, emoção de poucos, ver um poço a encher.

Só de pensar que os ramos eram tão débeis devido à antiguidade daquela árvore e que me poderia ter esbardalhado para dentro do poço até fico estonteada, mas que valia a pena aquele esforço lá isso valia, que eu saía de lá bem consolada com aquela aventura.

Que mundo fascinante me rodeava, tanto que corri por aqueles campos, tanto que desfrutei daquela natureza ímpar, tanto que conheci, tanto que aprendi, tanto que me fez o que sou hoje e tanto que sou grata por toda esta natureza e vida natural que tive. Foi tudo em tanto e tanto....

Coragem crescer.jpg

 

 

 

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