Viagem atribulada
Certa vez, íamos em Família numa viagem de comboio a caminho de Lisboa, alegres e contentes, não só porque gostamos de andar de comboio mas também porque no dia seguinte começavam as férias tão esperadas.
Tínhamos avião no dia seguinte de madrugada e para evitar o transtorno do estaciona aqui, estaciona ali e ainda deixar o carro no aeroporto por duas semanas achamos por bem ir de comboio.
Metódica como sou, aliás, demasiado metódica sempre que faço viagens mais prolongadas, levava tudo muito organizado, aliás, demasiado organizado, além de cada um ter a sua mala, levava numa pequena mochila à parte tudo o que era mais importante desde cartões do banco, cartões de saúde internacional, cartões de cidadão, Bilhetes de avião impressos (não fosse o telemóvel falhar), dinheiro em Euros, dinheiro em moeda local do país, carregadores de telemóveis, resumindo, os bens essenciais para embarcar e sobreviver.
Meu pai deixou-nos na Estação, fez-nos adeus e seguiu para casa. Ia encantada, como sempre com a paisagem que ia passando, sentia mesmo alguma emoção como quando tinha seis anos, não arredava pé do meu lugar para sentir aquela leveza em que o comboio se desloca sobre os carris, o próprio som que faz das carruagens soa-me bem, sentia-me em plenitude, porém ao passar V.V.Rodão lembrei-me da mochila, abri de imediato o saco de papel onde levava um lanche e não estava lá, na esperança que alguém lhe tivesse pegado, perguntei, “a mochila?, alguém tem a minha mochila?”, os três indignados e descontraídos homens responderam “mochila? Mas que mochila? Não a vimos”, pois claro, eles sabem que eu é que trato desses pequenos e importantes objectos.
Francamente, apesar do ar fresco do ar condicionado que se fazia sentir, senti que me caiu tudo ao chão, um ardor de fogo que me percorreu o corpo de alto a baixo, foi uma sensação de ausência que nem sei explicar, uma sensação de impotência que naquele instante só me deu vontade de ir ter com o maquinista e pedir-lhe encarecidamente que virasse o comboio ao contrário e regressasse à estação de partida, confesso que pensei seriamente nesta hipótese.
Quando em milésimas de segundos percebi que estava metida numa grande enrascada virei os pensamentos não para o problema mas para a sua solução e sabia que todos os minutos eram importantes, ligo de imediato ao meu pai, peço-lhe que visse no carro se havia uma mochila preta, ele confirma (mal por mal, antes assim) e peço-lhe que se preparasse para ir de carro de imediato para Lisboa, fazendo as contas ao tempo chegaria quase ao mesmo tempo que nós, mas possas, caramba, o meu pai, sabia que lhe estava a pedir algo tão difícil e sentia-me um traste nesse momento, mas logo me passou.
De repente tive outra ideia, havia um autocarro essa tarde que seguia para Lisboa, liguei para a central de camionagem, demoraram eternidades a atender o telefone, quando me atenderam expliquei que precisava que me transportassem um objecto para Lisboa, disseram-me que sim mas quando falei, já de forma descontraída e disse que era uma carteira foi a minha sentença, informaram que tratando-se de uma carteira com objectos pessoais estava fora de questão, achei que eram loucos, eles sabiam lá a minha afronta e por mais que eu explicasse que estava tanta coisa em causa, eramos 4 pessoas com avião marcado e dependíamos totalmente daquela mochila.
Não me deixei ficar perante aquele não, liguei para a sede da empresa, pedi para falar com o responsável máximo, nunca me esquecerei deste senhor foi um Deus para mim, além de simpático, atencioso, compreensivo, disponível, deu-me a esperança de resolver o assunto de forma mais prática sem ter que massacrar o meu pai.
Alivei! Voltei a sentir a emoção de ir de comboio, descontraí, porém, de repente dou um salto no assento porque me lembrei do meu pai, ligo-lhe de imediato, diz-me que estava mesmo quase a entrar no acesso à auto estrada e pedi-lhe em voz grossa, histérica, esganiçada e berrante “Não! Pára, volta para trás, já não é preciso nada!” Ufff coitado dele, ficou com a cabeça à roda e presumo que com algum pensamento estranho acerca de mim, nunca lhe perguntei nada.
Com todo este embaraço a viagem soube-me a pouco, quando dei por ela tínhamos acabado de chegar, saímos na Estação do Oriente e tínhamos um alojamento marcado na zona de Sete Rios, calhava bem porque era aí que o autocarro chegava mas ainda eram 10 Kms até lá e o mais óbvio foi apanhar um táxi.
De malas na mão, dirigimo-nos a um táxi dum senhor (mais um Deus que se cruzou connosco) que se prontificou a abrir logo a mala e arrumámos tudo, perguntou-nos o destino, informámos Sete Rios e nesse instante senti um choque enorme em mim porque caio na real e de forma espontânea lhe digo que não tínhamos dinheiro, ele diz que havia ali uma caixa multibanco e eu digo-lhe que também não tinha cartão, até me arrepio de pensar na nova afronta que senti, tropeçava nas palavras, ao mesmo tempo queria que ele acreditasse na minha história porque era real e o senhor nem sabia que fazer, apenas estava espantado, saímos todos do carro e pedimos muita desculpa, parecia uma cena digna de um filme patético!
Já fora do carro, o miúdo mais velho leva a mão ao bolso dos calções e diz “Mãe, tenho aqui umas moeditas, será que ajuda?” eram uns dois euros, claro que não chegava, expliquei ao senhor que a carteira já vinha a caminho mas só a teria comigo pelas 21:30h, bem, acreditando sempre que há uma solução para tudo na vida, o senhor disse, “Olhem, eu acredito na vossa história e vou-vos levar ao vosso destino, a verdade é que se por alguma razão não me pagarem, também não fico mais pobre, ora entrem sff”, é como que entrei nas nuvens, senti-me feliz de novo, senti uma nova força ainda assim parecia que estava num mundo distante daquele em que as pessoas não duvidam umas das outras.
Deixou-nos mesmo à porta do alojamento e combinámos que assim que estivesse em posse da mochila lhe telefonava para ir receber o dinheiro, quisemos dar-lhe as moeditas do Frank mas recusou e foi-se embora, fomos descansar um pouco e começámos a sentir vontade comer, depois lembrávamo-nos que só tínhamos umas moedas e éramos quatro, ainda entrámos num supermercado, olhávamos para as coisas de forma sôfrega mas aguentámos bem com um pacotito de bolachas que comprámos com as moedas que tinhamos.
Ansiávamos pelas 21:30h., fomos para a Central de camionagem, devorávamos com o olhar todos os autocarros que chegavam até que chegou o nosso e sim, sim, sim, trazia lá a mochila, que festa fizemos, que alegria, que alivio, que sensação boa e a primeira coisa que fizémos foi telefonar ao senhor do táxi, quando chegou junto de nós pedimos-lhe que nos levasse de novo ao alojamento, não era preciso por ser perto mas foi uma forma de lhe fazer compensar a ida ali além de que depois lhe demos uma recompensa.
O mais caricato disto tudo foi o que ele ainda nos disse “Desculpem lá a minha falha desta tarde quando vos aqui deixei, senti-me tão mas tão mal comigo mesmo, é que só depois de vos deixar me lembrei que vos podia ter emprestado algum dinheiro para poderem jantar, desculpem-me”.
Ficámos sem palavras, correram-nos as lágrimas, que bondade, que pessoa tão nobre, delicado, sensível, tanta sorte que tivemos, ficámos deslumbrados e pedimos-lhe que se um dia viesse à Serra da Estrela seria nosso convidado especial, até hoje nunca nos disse nada mas ficará no nosso coração eternamente.
Ainda lhe pedimos que nos levasse ao aeroporto de madrugada mas disse ser demasiado cedo para ele e que não podia, marcámos o serviço com um contacto que a minha tia me tinha dado por ter origens na nossa terra, estava à porta na hora marcada, levou-nos ao aeroporto e quando lhe íamos pagar não aceitou dinheiro (a minha tia explicou mais tarde que faz isto aos da terra dele), enfim, a Sorte da Raposa na altura já por ali andava.
Dois dias depois de ter aterrado tive o cuidado de ligar com o senhor responsável da central de camionagem e agradecer-lhe muito pelo que nos facilitou e ajudou a resolver um problema tão delicado, sei que ficou feliz com o meu contato, as pessoas gostam de ser reconhecidas e eu gosto muito de o fazer a quem merece
Nota: Imagem retirada da net, desconhecendo o autor